sábado, 16 de fevereiro de 2008

«E isto muda tudo…»




«Nós vos adoramos e bendizemos, ó Jesus.
Que pela vossa Santa Cruz remistes o mundo».

Assim começamos a Via-Sacra, em plena Via Dolorosa, ajoelhando na calçada diante do lugar onde então se erguia a Fortaleza Antónia onde, diante de Pilatos, Jesus foi condenado à morte. Dali até à Basílica do Santo Sepulcro que guarda em si as últimas estações, percorremos um caminho de passos e memória do que foram os últimos momentos da vida de Cristo, nosso Senhor e nosso Redentor.
O caminho atravessa hoje como então um “souq”, mercado árabe. As tendas deram lugar a lojas que vendem de tudo, as ruas são estreitas e escuras, pejadas de árabes e judeus que se acotovelam numa vozearia feita de gritos de crianças e sons cavos de velhos tendeiros em cantilenas de regateio, tudo envolvido por uma mistura de cheiros a especiarias e cabedais.
Procurando um maior recolhimento preferimos a madrugada, quando o silêncio substitui a confusão do mercado e as ruas estão quase desertas. Ficamos a sós com a memória, lida pausadamente nas passagens dos Evangelhos. Só os nossos passos se ouvem enquanto avançamos, seguindo a cruz.
Por aqui passou Cristo, carregando o madeiro e a humilhação de uma condenação injusta e revoltante…, quem sabe, pisando algumas destas pedras largas e polidas que hoje nos atrevemos a pisar. Esta estranha contemporaneidade, esta ponte com a história, tornam misteriosamente presentes os factos aqui acontecidos há dois mil anos. Se é histórico o facto, é dramaticamente actual a causa da Sua Paixão, porque o nosso pecado permanece a pedir perdão e remissão.
Assim prosseguimos, de Estação em Estação, lembrando outros tantos momentos determinantes daquele caminho: a Condenação; a tomada da Cruz sobre os Seus ombros; os encontros com Sua Mãe, com a Verónica e com as mulheres de Jerusalém; a ajuda forçada de Simão de Cirene e as Suas três “quedas”. A história que lembramos é tão dolorosamente humana que é impossível evitar a comparação com os dramas do nosso tempo sofridos por homens, também eles inocentes, por causa de guerras e genocídios, de fome e miséria. É como se todo o sofrimento do mundo fosse atraído pelo sofrimento de Cristo e a ele se unisse.
Chegados à Décima Estação, estamos à porta da Basílica do Santo Sepulcro, onde contemplamos o “despojamento das Suas vestes”… e entramos. Junto ao Calvário detemo-nos diante da Crucifixão. Eis-nos chegados ao momento mais denso desta caminhada. De olhos fixos na rocha branca onde esteve cravada a Cruz Redentora ouvimos a descrição dos momentos últimos e definitivos: «Tudo está consumado. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito.»[1]
Descemos até à Pedra da Unção onde o “Senhor foi descido da Cruz” e preparado para ser sepultado. Há dois mil anos era também uma Sexta-feira, como também neste dia, fazia-se tarde e estava próximo o Sábado. A pressa do Sábado confunde-se com a minha de ver acabado aquele caminho da memória. É curta a distância até ao lugar do Sepulcro, a Sua última morada, como é curto o tempo em que do peso da morte passamos à alegria certa da Ressurreição, pois entramos e beijamos a pedra do sepulcro vazio e é como se ali ouvíssemos a mesma frase do mesmo anjo: «Não vos assusteis! Buscais a Jesus de Nazaré, o crucificado? Ressuscitou; não está aqui. Vede o lugar onde o tinham depositado.»[2]
Tenho que reconhecer que a Via-Sacra sempre foi para mim o gesto de piedade cristã mais penoso, mais difícil, a que adiro, ao contrário de outros, por acto de vontade deliberado. Não me é fácil aceitar reviver momentos tão duros e tão injustos. Não me é fácil o sabor a derrota do justo, a humilhação do inocente ou a vitória da mentira, da vingança e da calúnia. Mas foi aqui em Jerusalém, no silêncio dos meus passos que encontrei um sentido novo para este gesto porque descobri como é bom fazer companhia a este meu Jesus nas horas duras e amargas da Sua Paixão.
Afinal, eu também estou implicado no que então aconteceu, também eu estava na origem e na causa do que ali Ele padeceu. Eu estava no seu Coração, eu era um dos que Ele quis resgatar do pecado e redimir da morte. Objectivamente, a minha salvação passou por aquelas ruas… e esta certeza mudou tudo na maneira como agora vivo as vias-sacras que vou fazendo. Passei de espectador a participante, simultaneamente cúmplice e destinatário deste acontecimento… e isto muda tudo… e isto mudou tudo em mim.

Rui Corrêa d’Oliveira
(in Mensageiro, Março 2008)

[1] Jo 19, 30
[2] Mc 16, 6

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